A sangria da tecnologia é consequência de um “novo normal” que nunca chegou
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Queremos conhecer quem ouve o Tecnocracia. Se puder, tire dois minutinhos para responder a primeira pesquisa demográfica do podcast. Ajuda bastante e não custa nada.
Em janeiro de 1953, estreou no Théâtre de Babylone, em Paris, a nova peça de um dramaturgo irlandês chamado Samuel Beckett. Na peça, dois mendigos passam dois atos conversando sobre a vida, interagindo com outros três personagens e esperando um sujeito que só conhecemos pelo nome. Dado que em janeiro de 2023 completaram-se 70 anos da estreia, não tem por que se preocupar com spoiler, não é mesmo? Então um leve spoiler para você: no fim, o tal Godot não aparece e os mendigos, Estragon e Vladimir, terminam a peça revoltados com a ausência, mas imóveis, incapazes de se movimentarem. Ambos, em outras palavras, se mantêm Esperando Godot, o que vem a ser o título da peça. Esperando Godot é um clássico do teatro moderno, reencenado centenas de vezes com diferentes abordagens e panos de fundo e dissecada atrás de significados políticos, psicológicos, filosóficos, sexuais…
No Brasil, uma das montagens mais famosas de Esperando Godot ficou marcada na história do teatro nacional por outra razão. Em 1969, a então maior atriz de teatro do país, Cacilda Becker, participou de uma montagem da peça no papel de Estragon, enquanto Vladimir era vivido por seu ex-marido, Walmor Chagas. Seu filho também fazia parte do elenco. Em uma noite de maio de 1969, os atores terminaram o primeiro ato e, na coxia durante o intervalo, Becker teve um derrame cerebral. Incapaz de responder, Cacilda foi levada às pressas ao hospital ainda vestida como Estragon. Pouco mais de um mês depois, morreu aos 48 anos por consequência do derrame. O Teatro Cacilda Becker saiu do endereço original na avenida Brigadeiro Luís Antônio e foi para a Lapa, São Paulo. No prédio, atualmente está uma faculdade.
Ainda que esteja no título, Esperando Godot nos informa pouco sobre Godot — ele não apenas nunca aparece no palco como também um menino que se diz seu funcionário avisa aos dois mendigos que Godot não conseguirá vir hoje, mas com certeza vem amanhã. Estragon e Vladimir manifestam suas frustrações por estarem há tanto tempo esperando a figura sem que ela dê as caras. Em certo momento da peça, ambos cogitam se matar, mas desistem quando percebem que falta uma corda para amarrar nos galhos da árvore que serve como um dos poucos ornamentos do palco. Uma das grandes dúvidas que cerca a peça é por que, mesmo diante dessa frustração e de uma aparente humilhação por serem ignorados por alguém que aguardam com tanto afinco, Estragon e Vladimir não vão embora.
Ambos tentam. Há, pelo menos, dois momentos em que os dois fazem um movimento para quebrar a inércia da espera. Mas as palavras não são acompanhadas de ações. Estragon e Vladimir ficam parados, imóveis, fadados aparentemente à imobilidade eterna.
Uma das interpretações mais populares da peça é que a expectativa criada por Estragon e Vladimir pela presença de Godot e qualquer que seja a consequência dela parece sedutora demais para ser abandonada. Enfrentar a realidade quando o tão aguardado não vem às vezes pode ser duro demais, a ponto dos dois maltrapilhos escolherem ficar nessa expectativa, nessa imobilidade.
Esperando Godot é uma peça curta, fácil de encontrar e de leitura rápida. Aconselho todo mundo a ler.
Você já leu o título e já entendeu aonde nós vamos. Há alguns meses eu tenho pensado bastante a respeito de uma expressão que tomou nossas vidas e conversas no começo de 2020 para sumir completamente nos meses seguintes: “novo normal”. A primeira quinzena de março de 2023 marcou o aniversário de três anos do dia em que a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou uma pandemia global. A gente pode não lembrar já que restou pouco de pandemia ao nosso redor, no dia a dia, mas a OMS nunca voltou atrás.
Teoricamente, ainda estamos sob uma pandemia global. Mas olhe ao redor. O que ainda tem de pandemia nas nossas vidas? Depois de 762 milhões de casos, 6 milhões de mortes, 13 bilhões de doses de vacinas administradas e milhões de pessoas lidando com a chamada covid longa, a covid-19 ainda segue matando, mas em números bem menores do que em 2020 e, principalmente, 2021. Houve picos de contágio e morte mesmo após a vacina, como os EUA no primeiro trimestre de 2022 e na China na virada deste ano. Só no Brasil, morreram 255 pessoas pelo vírus na primeira semana de abril, segundo dados do Ministério da Saúde. Das 700 mil mortes do Brasil, 424 mil foram em 2021. Centenas de pessoas morrendo de uma doença para qual já existem vacinas e cujos remédios seguem a evoluir ainda é chocante, mas, de novo, olhe ao redor: que mudanças provocadas pela pandemia em nossas rotinas ainda se mantêm?
O que nos leva à dúvida: o que há de “novo normal” neste normal para o qual voltamos? O que mudou? No começo do ano, eu esperava minha mulher provar uma roupa enquanto lia alguns artigos até a ficha cair. Se você entrou no Techmeme1 ou no LinkedIn em algum momento de 2023, deve ter se deparado com alguma notícia de demissões em massa, quebra de empresas (incluindo bancos que financiavam startups) ou investigações contra figurões do mercado. A gente já falou um pouco sobre essa sangria no último episódio da quarta temporada: 2022 foi um ano de implosão, em que aquela crença semi-religiosa de que a tecnologia só faria o bem e estaria fadada a tomar as nossas vidas neste molde atual desmontou diante dos nossos olhos.
A questão é que 2022 foi um tempero em relação ao que o primeiro trimestre de 2023 nos trouxe. Durante a pandemia, o mercado de tecnologia se convenceu de que estava entrando em uma nova realidade onde seu papel seria muito maior e mais importante do que já era e de que outros setores se curvariam ainda mais ao seu poder. O tal “novo normal” era uma senha para desbloquear um mundo em que ainda mais das nossas relações pessoas e financeiras seriam intermediadas pelas plataformas digitais. Que o naco que a Big Tech teria da nossa vida seria ainda maior. Que ideias estapafúrdias ganhariam espaço na realidade. Que todo trabalho seria remoto, o que nos obrigaria todos a pagar planos para acessar funções avançadas para calls, colaboração remota e afins de serviços como Zoom e Teams.
A tecnologia imaginou um mundo de abundância digital e se preparou para ele. Só que o “novo normal” godotizou-se. O mercado todo criou uma expectativa enorme e ela não apenas não se realizou, mas as condições que permitiram sua previsão mudaram bastante.
No segundo episódio da quinta temporada do Tecnocracia, a gente vai mostrar como essa sangria na tecnologia, a pior desde o momento em que esses monolitos se formados, é resultado de um delírio, do mergulho naquelas previsões lisérgicas de como a tecnologia (principalmente a tecnologia de quem está fazendo a previsão) estaria fadada a dominar a vida de todo mundo, brindando seus criadores com uma conta bancária polpuda, piscinas de Laurent-Perrier e casas de veraneio de Angra dos Reis a Mykonos. Não se engane: o Tecnocracia não é um podcast sobre tecnologia. O objetivo aqui é encarar os efeitos da tecnologia da nossa vida com honestidade, sejam eles bons ou ruins.
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Para construir o argumento, vamos focar em uma consequência específica da pandemia declarada pela OMS em 11 de março de 2020: o financeiro. Visto em gráfico, a linha que mostra a variação diária das bolsas pelo mundo toma mais ou menos o mesmo formato — a linha mergulha na segunda quinzena de março e vai, aos pouquinhos, se recuperando. Um formato semelhante pode ser observado pelo número de demissões globais — mergulho no começo da pandemia e recuperação lenta, em alguns casos até hoje incompleta. Estamos falando de linhas gerais, que agregam todas as categorias que compõem aquela linha.
Vamos agora quebrar essas linhas e focar em um setor em específico: o de tecnologia. Com pouquíssimas exceções (como Zoom e Peloton, serviços certos na hora certa), todas mergulham junto. A diferença é o tempo de recuperação: nos seis primeiros meses de pandemia, Meta, Apple, Alphabet (Google), Microsoft e Amazon tiveram desempenhos acima dos cerca de 20% de crescimento do índice S&P 5002. A Amazon e a Apple quase dobraram de tamanho na bolsa norte-americana, segundo a consultoria CB Insights. No pior momento de 2020, cada ação da Apple valia US$ 57. Na última semana do ano, já estava em US$ 131. Pelos próximos dois anos, foi neste novo patamar mais alto em que todas elas ficaram. Em 2022, o valor de quase todas na bolsa caiu.
O efeito não foi sentido apenas no valor das ações. Enquanto gráficos de funcionários em quase todas as indústrias mergulhavam junto com os de valor de mercado, as contratações na de tecnologia não pararam. Aqui, há uma discordância sobre o efeito da pandemia nas novas vagas.
A narrativa popular agora é que essas demissões foram causadas por contratações exageradas das empresas de tecnologia durante a pandemia, mas, ainda que isso pareça ter acontecido com a Amazon — e por ótimas razões dada a forma que o e-commerce disparou durante as quarentenas —, a realidade é que o resto das empresas de tecnologia manteve o ritmo que sempre registraram. Claro, o número de funcionários adicionados é grande, mas isso é em função de manter a mesma taxa de contratação em uma base cada vez maior.
A conclusão acima é do analista Ben Thompson, da Stratechery, usando dados dos balanços de Meta, Amazon, Alphabet (Google) e Apple. Para Thompson, o crescimento acelerado veio, mas só em 2021 e sem se afastar tanto dos crescimentos anteriores.
E se mudarmos o recorte? Sonu Varghese, do grupo de investimento Carlson, analisou o ritmo de crescimento anual de funcionários das 25 maiores empresas de tecnologia do S&P 500. A tendência é clara: entre 2014 e 2019, o crescimento é linear. A partir de 2020, a linha desvia para cima e se mantém assim em 2020, 2021 e 2022. Se continuasse na tendência pré-pandemia, Varghese calcula 9% menos funcionários contratados que os trazidos no pós-pandemia.
Os dois têm recortes diferentes e bons argumentos. O fato, porém, é que, no pior dos casos, enquanto a economia global demitiu milhões de pessoas, a pandemia não teve efeito desacelerador no ritmo de contratação não apenas da Big Tech, mas de inúmeras grandes e médias empresas que lidavam com tecnologia.
Vamos voltar ao período de seis meses em que o valor das ações de tecnologia dispararam em 2020. O que aconteceu ali? Solidificou-se aquela certeza sobre a qual falamos há pouco: nossa vida, já mergulhada nas plataformas digitais até o pescoço, nos afogaria. Atividades que só conseguíamos fazer presencialmente — por uma questão mais cultural do que tecnológica — agora seriam feitas online. Pedalar? Yoga? Malhação? Reunião? Date? Que coisa miserável de se revisar anos depois… Foi a consolidação do “novo normal”, a projeção que a humanidade criou de como viveríamos nossa vida dali por diante.
Criar cenários futuros delirantes é uma característica fundamental do mercado de tecnologia. Se fosse só se enganar, ótimo. O problema é que quem desenha esses delírios continua a ser ouvido de uma forma quase religiosa pela galera de fora, que enxerga aquilo com olhos curiosos e embasbacados. O mercado fora da tecnologia engole suas baboseiras e ainda lhe diz obrigado. A questão é que, tal qual no Big Brother Brasil, favoritismo não se faz com auto-pronunciamento. O mercado de tecnologia adora achar que é capaz de moldar o futuro do jeito que quer. É uma crença calcada em uma das frases mais célebres de Steve Jobs: “os clientes não sabem o que querem até eu mostrar para eles”. Essa onipotência ilusória de que seria capaz de moldar o futuro já é uma sina em tempos normais. Vide a quantidade de histórias em que o mercado de tecnologia apostou, pulou de cabeça e, ao tentar aterrisar, a plataforma não estava lá — pode contar o Segway para transporte pessoal em 2000, o metaverso para interações em 2005 e 2022, as criptomoedas para todo o sistema financeiro na última década…
Com o aumento repentino e vertical do valor das ações de tecnologia, enquanto todos os outros setores eram tratorados pelos efeitos da pandemia, lá foram milhares de empresas de base tecnológica no mundo reescrever seus planejamentos para aumentar o que o futuro lhes traria: mais receita, mais funcionários, mais clientes, mais lucros… A percepção ficou tão forte na cabeça de executivos, investidores e funcionários que o risco envolvido no negócio de se criar do zero uma empresa sem a certeza de que haveria um mercado a ser explorado parecia inexistente. Para tentar remediar o risco de crises econômicas prolongadas, governos pelo mundo baixaram as taxas de juros e o dinheiro para projetos de tecnologia, que já era abundante, jorrou ainda mais com fundos redirecionando para tecnologia recursos antes alocados em setores impactados seriamente pela pandemia ou em títulos dos governos. Com essa imagem do “novo normal” tão sedimentada e com tanto dinheiro circulando, parecia que a visão sairia do delírio para o concreto.
Hoje a gente sabe que o único concreto que o “novo normal” encontrou foi o do chão. O “novo normal” durou menos que o metaverso do Zuckerberg.
Várias razões explicam o fracasso do “novo normal”, quase todas resvalando em uma característica fundamental ao se projetar o futuro: você cria a projeção com as informações passadas que tem em mãos, mas há um grande risco de fatores não levados em conta acontecerem. É o tal cisne negro da teoria do Nassim Nicholas Taleb.
A primeira foi a vacina. Se tem algo fundamental que a pandemia mudou foi o ritmo de produção de um imunizante efetivo. Até a pandemia de covid-19, a vacina desenvolvida com maior rapidez na história tinha sido a contra caxumba, na década de 1960: quatro anos. O “novo normal” foi criado tendo em vista essa estimativa temporal. O esforço global empreendido por empresas privadas, como a Pfizer, e centros de pesquisa pelo mundo encurtou imensamente o prazo de produção: menos de nove meses depois da OMS anunciar a pandemia, a vacina da Pfizer e da BioNTech passou por todos os testes e sua aplicação foi aprovada. A revista Nature publicou uma reportagem excelente sobre o tema. Com a produção em grande escala, distribuição e aplicação de vacinas efetivas, a humanidade imunizada lembrou que melhor do que ficar olhando para uma tela enquanto pedala ou conversa é fazer tudo isso ao vivo. Foi o primeiro “reality check”, o que ajudou a derrubar o valor das ações de empresas semi desconhecidas que explodiram durante a pandemia, notadamente Zoom e Peloton.
Sabe quem também aproveitou a vacina para voltar ao normal? Empregadores. Após serem forçados a coordenar uma rotina remota, muitos dos grandes empregadores mudaram suas políticas de trabalho remoto assim que a vida normal se restabeleceu. Abre aspas para reportagem da CBS News em janeiro:
Algumas das empresas mais proeminentes dos EUA querem reverter o trabalho em casa e exigir que os funcionários passem mais tempo no escritório. Na Walt Disney, que agiu rapidamente para fechar seus escritórios e parques temáticos após a erupção do COVID-19 em 2020, o CEO recém-restaurado Bob Iger disse aos funcionários que a partir de março espera que todos estejam no escritório quatro dias por semana, normalmente de segunda a quinta-feira. Anteriormente, a maioria dos funcionários da Disney era obrigada a se apresentar três dias por semana.
Outras empresas, como a Snap, seguiram a toada. Segundo dados do LinkedIn, a proporção de vagas de emprego citando home office caiu de 20% em março de 2022 para 14% no começo de 2023.
O segundo foi a inflação. A mudança na demanda por produtos no começo da pandemia impactou os setores fabril, de matéria-prima e de logística, o que acelerou a inflação no mundo inteiro. Para brasileiro isso pode soar como repetição, lá vamos nós de novo enfrentar a inflação, mas os Estados Unidos enfrentaram a pior inflação dos últimos 40 anos em 2022 — o preço do ovo mais que triplicou. Segundo cálculo do Pew Research Center, a inflação no primeiro trimestre de 2022 foi mais de dez vezes maior que no primeiro trimestre de 2020 em Israel, Grécia, Itália, Espanha e Portugal. No Brasil foi menos de cinco vezes, mas a economia brasileira já enfrentava uma questão própria.
Economia 101: quando a inflação está alta, a primeira coisa que você faz para combatê-la é aumentar a taxa básica de juros, que norteia os juros de diversas aplicações financeiras, empréstimos e financiamentos. Foi o que o Federal Reserve, o Banco Central norte-americano fez. De novo, à inglória missão de descrever um gráfico em áudio: antes da pandemia, a taxa de juros dos EUA estava quase em 2,5%. Na pandemia, ela mergulhou para 0,1% como forma de acelerar uma economia empacada. Ali ela ficou até o primeiro trimestre de 2022, quando a inflação mostrou que não seria passageira. O que o Fed fez? Faz um ano que vem a aumentando até os atuais 4,8%. É uma escala do nível Alex Honnold.
É aí que o cenário global introduz um fator com o qual empresas de tecnologia não estavam acostumadas. Abre aspas para uma excelente reportagem do New York Times escrita pelo David Streitfeld:
Por mais de uma década, investidores desesperados por retornos enviaram seu dinheiro para o Vale do Silício, que o distribuiu para um amplo grupo de startups que não receberia tanto capital em tempos menos prósperos. Valores de mercado extremos facilitaram emitir ações ou obter empréstimos para expandir agressivamente ou oferecer acordos excelentes para potenciais clientes como forma de aumentar rapidamente a participação de mercado. Foi um boom que parecia que nunca terminaria. O setor de tech acumulou vitórias e seus competidores definharam. “Toda a indústria de tech nos últimos 15 anos foi construída em capital barato. Agora eles estão sendo atingidos pela nova realidade, e pagarão o preço”, diz o analista-chefe da Guidehouse Insights, Sam Abuelsamid”
A sombra de “inovação” que projeta e a expectativa de repetir múltiplos de investimentos já vistos em Alibaba, Google, Facebook e afins tornou o setor de tecnologia um alvo para investidores desesperados. Obter capital sempre foi facílimo e o tal “novo normal” tornou as coisas ainda mais babinhas. E aí vem a invertida: a mesma pandemia que derrubou a taxa de juros resultou numa inflação que obrigou Bancos Centrais pelo mundo, principalmente nos EUA, a aumentar os juros, o que secou a torneira do dinheiro fácil. Para ser honesto: obter dinheiro ainda é fácil, mas não mais na abundância de outrora. Pela primeira vez na história, as empresas de tecnologia estão tendo que contar dinheiro. Não entenda errado: a indústria ainda é violentamente lucrativa. Mas aquele tempo de crescimento infinito e zero preocupação com balanço passou.
As demissões de dezenas de milhares de funcionários pelo mundo que você vê no noticiário há meses têm relação direta com essa nova realidade: o “novo normal” de verdade inclui cortes de custos, investimentos que nunca viraram nada além de piada no mercado e na mídia (no Tecnocracia, inclusive) e um inédito controle de gastos. Vamos só lembrar algo: em um mercado menos polpudo, a Uber não demoraria mais de 12 anos para dar lucro lucro3 e, provavelmente, teria quebrado no meio do caminho.
Não existe história melhor para ilustrar esse breque no capital barato do que a de um banco sobre o qual, provavelmente, você nunca tinha ouvido falar até saber em março que ele tinha quebrado. Nascido como um banco regional na Califórnia, o Silicon Valley Bank (SVB) ganhou projeção como um provedor de serviços financeiros para a indústria de tecnologia. Essa proximidade fez dele o banco preferido de startups do Vale do Silício — fundos de investimentos instruíam que startups investidas usassem o banco para receber o aporte e gerenciar suas contas. O jornal The Guardian estima que o SVB era responsável pelos negócios de quase metade de todas startups com capital de risco. Calcule a imensidão disso.
Essa proximidade significava que, se os negócios de tecnologia estivessem bombando, os negócios do SVB também estariam. Foi o que aconteceu e os balanços do SVB não mentem. “O banco se especializou em oferecer serviços bancários para startups que tinham quase nada ou nenhuma receita, mas, ainda assim, eram investidas com dinheiro, muito dele vindo, indiretamente, do enorme aumento de capital disponibilizado pelo Fed. Os depósitos do SVB cresceram de US$ 62 bilhões no final de 2019, pré-pandemia, para US$ 189 bilhões no final de 2021. E o banco tentou agir de forma conservadora — investiu quase todo esse dinheiro no que era, durante uma era de baixos juros, entendido como o investimento mais seguro e garantido: Títulos do Tesouro dos EUA e outros bonds de longo prazo”, como explica Ezra Klein no New York Times.
Mas como o historiador financeiro Adam Tooze escreveu, o que eles realmente estavam fazendo era “uma aposta de US$ 100 bilhões em taxas de juros”. Quando a taxa aumenta, os valores de bond caem. Talvez não tivesse sido um problema se o SVB tivesse se protegido ou diversificado adequadamente. Mas não. Talvez não tivesse sido um problema se sua base de clientes não precisasse do dinheiro de volta — e rápido. Mas eles precisaram. Conforme a taxa de juros aumentava, estas mesmas startups não conseguiam levantar capital tão facilmente quanto antes, e, por isso, precisavam acessar o próprio dinheiro. Isso quer dizer que o SVB estava fortemente exposto a aumentos na taxa de juros tanto em seus depósitos quanto em seus investimentos.
Há outro fator que levou à tempestade perfeita: quando o burburinho sobre uma possível insolvência do SVB começou a circular, fundos de investimento mandaram startups do seu portfólio tirarem seus dinheiros do banco o mais rápido possível, o que aumentou ainda mais o pânico do mercado e o círculo recomeçou. É o que a Lu Gimenez chama de “bank run”, o estouro da manada que cria pânico e raramente para em uma instituição. Em 10 de março de 2023, o Silicon Valley Bank quebrou, na maior quebra bancária desde 2008. Startups clientes do SVB que já estavam com dificuldade para levantar capital viram parte de suas reservas financeiras evaporarem. O Fed garante que é capaz de devolver até US$ 250 mil de cada conta. Alguns clientes do SVB tinham um pouquinho a mais que isso guardado: a Roku revelou que tinha cerca de US$ 500 milhões. Tudo além dos US$ 250 mil segurados pelo Fed pareciam ir pelo ralo até que o governo Biden, sob pressão, garantiu todos os depósitos para evitar um efeito dominó.
O podcast The Daily do New York Times publicou um episódio muito bom sobre a quebra do SVB que entra em outra questão muito relevante para o debate: a diretoria do SVB insistiu para que o governo dos EUA relaxasse regulações que exigiam mais atenção dos bancos para diminuir o risco de quebra — jogue no Google “Dodd-Frank”. O governo Trump concordou e relaxou as regulamentações. Cinco anos depois, o SVB quebrou. Sadtrombone.com.
Vamos amarrar tudo. Puxando a história do começo, pode ser tentador concluir que, dentro da analogia beckettiana, Godot não só não apareceu, como mandou um capanga espancar Estragon e Vladimir. Tentador, mas errado. A realidade é um pouco mais complicada.
Para entender a razão, vamos aos números. Em 2022, quase 165 mil empregos foram fechados no mundo todo por empresas de tech, segundo o Layoffs.FYI, um site dedicado apenas a tabular a sangria. Em 2023, o número já passa das 173 mil demissões. Neste novo normal real de gente vivendo a vida pré-pandêmica e menor liquidez do mercado, quase 340 mil empregos em mais de mil empresas de tecnologia se foram. Entre os cowboys de passaralho 4, nomes que você certamente esperaria, como Google, Meta, Amazon, Netflix, Microsoft e Disney, e outros que talvez você nunca tenha ouvido, como Ericsson, Salesforce, Cisco, Carvana e até, veja você, a mesma Peloton que se valorizou tanto no começo da pandemia.
Isso quer dizer que todo aquele frenesi de contratação detalhado há alguns minutos se reverteu? Longe disso. “As demissões anunciadas nas últimas semanas revertem uma fração das contratações feitas nos últimos anos”, diz reportagem do New York Times comparando os dois fenômenos. Contando contratações e demissões, o saldo na Amazon é de 728 mil novos funcionários desde o fim de 2019. Os cortes anunciados até o fim de janeiro correspondiam a 1,2% da força de trabalho. Na Microsoft, a proporção é de 4,5%. No Alphabet (Google), 6,4%. Na Meta, 12%. Ou seja: pode até existir a correção do que a Lu chamaria de “over hirings”, mas o balanço de mão de obra no período ainda é brutalmente positivo.
O fim do crescimento explosivo não significa, necessariamente, encolhimento. O mercado de tecnologia segue crescendo, mas em um ritmo menor do que o teto infinito dos últimos 20 anos e com uma gordura gigantesca construída no mesmo período. Essa cultura de eficiência, na qual todas as empresas do mundo sempre viveram — bem-vinda, Big Tech —, foi, inclusive, tão bem recebida por investidores que as demissões ajudaram a vitaminar suas ações. Ou, como resume o Axios:
Wall Street está recompensando o setor pelas demissões. Os investidores aplaudem a “disciplina” e folhas de pagamento menores podem significar mais lucros por vir.
Na mesma linha, Cory Doctorow fez uma conta:
A demissão de 12 mil funcionários do Google ocorreu logo após uma gigantesca recompra de ações — o famoso buyback — na qual a empresa gastou dinheiro suficiente para pagar esses 12.000 salários pelos próximos 27 anos.
“Buyback” é uma forma de aumentar o valor da própria ação e não houve setor que tenha recomprado mais ações no último ano que o de tecnologia.
Ou seja: não é que falta dinheiro. Ainda tem muito e essa pilha vai continuar crescendo — talvez num ritmo menor que antes, mas ainda crescendo. O “novo normal” de verdade tem dinheiro mais caro e menos atividades humanas gerenciadas por plataformas digitais, mas a sangria dos últimos meses é pontual para a Big Tech, um cortezinho para aliviar um inchaço específico enquanto o corpo continua a crescer.
Uma das teorias mais populares sobre Esperando Godot é que Estragon e Vladimir foram os maiores beneficiados por Godot nunca aparecer. Frustrada a expectativa, os dois mendigos estavam livres para, finalmente, viverem suas vidas. A interpretação sugere que Estragon e Vladimir se deram bem pelo que não apareceu. Se há um papel para a Big Tech dentro desta analogia, é esse: o que apareceu no lugar do esperado pode ser tão vantajoso quanto. Na economia da atenção, a banca sempre leva.
Foto do topo: Fernand Michaud/Wikimedia Commons.
- O Techmeme é um agregador do mercado de tecnologia que indica as melhores reportagens, comentários e tweets norte-americanos sobre determinada notícia. É um dos sites mais úteis para entender o que está rolando em tech. ↩︎
- O Standard & Poor 500 é um índice que reúne as 500 maiores empresas dos Estados Unidos. ↩︎
- No último trimestre de 2022, a empresa faz um “sambarilove” para contar como lucro participação em outras empresas de ride-hailing. ↩︎
- Passaralho é uma expressão do jornalismo que junta duas palavras – você sabe quais… – para designar demissões nas redações. ↩︎
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