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Em breve toda a literatura vai saber a frango. Uma conversa com Guilherme Pires
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O descarado elogio que hoje é feito das humanidades serve-se amiúde de oposições bastante patéticas face ao regime tecnológico, mas a verdade é que os clássicos tendem a ser dissolvidos em soluções ácidas até deles só restarem esses elementos ou citações mais célebres que podem ser instrumentalizados, como slogans, circulando hoje nas redes sociais como moeda de troca de uma sabedoria proverbial, cada vez mais distante do contexto e da tensão que lhes é própria, até ser possível utilizá-los para se dizer tudo e o seu contrário. Num exame implacável desse exercício de ir para as praias homéricas à cata da conquilha, o escritor Christian Salmon mostra-nos como, tantas dessas frases, desgarradas do seu contexto histórico e da obra de que foram extraídas, escapam inteiramente à intenção do autor, tornando-se signos permutáveis, máximas e até chavões, que engrossam o grande caudal de clichés em que se banha a nossa época. Publicado no mais recente número da revista Electra, Salmon recupera a célebre frase de Charles Péguy onde este nos fez notar que "Homero é novo esta manhã e talvez nada seja tão velho como o jornal de hoje". Para Salmon este regresso dos Antigos indicia uma tentativa de recuperar um quadro de referências num mundo onde esses pontos se estão a perder, e no qual todas as autoridades se acham desacreditadas, convocando-se Homero num esforço de satisfazer a nossa busca por um narrador fiável e incontestado. Nos nossos dias, e depois de Kasparov ter sido batido pelo Deep Blue, poderia recriar-se esse enfrentamento num território muito mais poroso e complexo, onde os padrões maquínicos até aqui estavam claramente em desvantagem. Mas, se fosse hoje encenada uma batalha opondo Homero ao Google, o problema não seria saber se o primeiro esmagaria o motor de pesquisa, mas antes, e não havendo métodos analíticos que pudessem decidir de forma objectiva quem ganhou ou perdeu, se não seria o público, ignorando as epopeias, a preferir a mistela que a Google confeccionasse seguindo ponto por ponto as suas preferências, e devolvendo-lhe assim uma espécie de auto-retrato adequadamente filtrado. A questão dos nossos dias não é saber se os clássicos mantêm o seu vigor face aos enredos costumizados para cada um de nós com base nas nossas preferências, mas simplesmente se nós não degradámos o nosso aparelho cognitivo ao ponto de os clássicos estarem a tornar-se demasiado incivilizados e desordeiros ou exigentes para o nosso gosto. O consumidor segue os seus caprichos até à alienação, e aquilo a que confere o valor "humano" assemelha-se cada vez mais a um reflexo distorcido pela máquina. As provas estão aí, e numa notícia que por estes dias circula nos nossos órgãos de informação, ficámos a saber que já foi realizado um estudo de uma universidade norte-americana que concluiu que os leitores estão convencidos de que, se lhes for dado a escolher, preferem a poesia escrita por humanos, mas que, se esta lhes for servida a par daquela gerada por Inteligência Artificial, a partir do momento em que a sua origem lhes seja ocultada, preferem o produto sintético, considerando-o “mais fácil de compreender”, e sendo levados a acreditar que isso significará que foi escrito por um humano e não por uma máquina. A inteligência que nasce do confronto com as dificuldades está a levar uma abada face a todos esses produtos que se reproduzem de acordo com padrões de consumo, e a deixar claro que a cultura de massas foi uma forma de nos deixar tenrinhos para o desbaste maquínico. Se nos esforçássemos por abandonar a perspectiva da eficácia, as projecções trimestrais, as expectativas de lucro e o regime utilitarista que guia as nossas escolhas, se seguíssemos uma matriz de análise histórica, como sugere Fredric Jameson, talvez nos déssemos conta de que a História que ainda somos capazes de imaginar a partir destas métricas é uma forma de agonia, e só conhece um movimento terminal. Se o futuro hoje é tão mais pobre do que foi no passado, é porque não o conseguimos representar de outra forma senão como uma repetição monótona do passado. A ideia consoladora de nos transferirmos para uma realidade onde sejamos imunes face aos perigos, transfere-nos depressa para quadros virtuais. Como assinalou António Guerreiro recentemente, essa tentação de estarmos ao abrigo das catástrofes responde a uma tendência paranóica e está constantemente a atravessar fronteiras que deviam ser intransponíveis. "É habitada pelo fantasma da protecção absoluta e da prevenção, tornando-se assim um obstáculo à liberdade, inclusivamente à liberdade de correr riscos." A humanidade poderia ser definida precisamente como essa espécie que corre riscos desnecessários, pois vive enfebrecida pela possibilidade de superar aquilo que já antes foi alcançado. Steiner aponta o milagre que se dá pelo simples facto das nossas gramáticas engendrarem continuamente proposições contrafactuais, 'e se...', e sobretudo tempos futuros, sendo isso o que deu à nossa espécie os seus meios de esperar e de ir muito para além da extinção da espécie. "Duramos, duramos criadoramente devido à nossa capacidade imperativa de dizer 'não' à realidade, de construir ficções de alteridade, de um 'outra coisa' sonhado, querido ou esperado que a nossa consciência possa habitar." Hoje, esta dimensão humana está em clara perda, e Baudrillard fala de um “hedonismo ligado”, em que o corpo não passa de um roteiro cuja curiosa melopeia higienista corre entre os inúmeros ginásios e os consultórios de cirurgia plástica e que descrevem uma obsessão colectiva assexuada. Assim, vai caracterizando uma sociedade fóbica, que responde a esse imperativo de tudo proteger, tudo captar, tudo circunscrever… “Tudo recensear, tudo armazenar, tudo memorizar.” Ele adianta como ali tudo merece protecção, embalsamamento, restauração. “Tudo é objecto de um segundo nascimento, o eterno do simulacro." O problema é então como localizar a diferença radical, essa que faz renascer o espírito insubmisso e que, diante das dificuldades o torna cada vez mais engenhoso, mais hábil e desafiador... "Como ligar de novo a ignição ao sentido da História para que ela comece uma vez mais a transmitir sinais, por mais débeis que sejam, do tempo, esse que segue adiante, essa margem de alteridade, de mudança, de Utopia", questiona Jameson. É uma questão de privação, de divórcio das máquinas, reconhecendo que aquilo que estas nos oferecem como futuro vai no sentido da nossa substituição. O passo seguinte no quadro evolutivo em que estamos presentemente lançados, passa por fazer do humano apenas o elemento de ligação para esse "sucedâneo maquinal". Neste episódio, e para discutir as implicações e as ameaças que hoje se colocam ao sector editorial, esse que nos últimos séculos tem estado no eixo dos esforços de transmissão de um legado cultural de séculos, contámos com a experiência desse subtil operador que tem sido Guilherme Pires, nas suas funções enquanto organizador de jogo, editor e conselheiro, tradutor, revisor, e tapa-buracos em toda a linha, alguém que conhece de cor a planta do edifício, e trabalhou em todos os pisos, desde aqueles submersos e que estão escondidos dos leitores e do público em geral, até aos andares modelo e às operações de charme e todos os esquemas que tanto embevecem os patêgos.
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O descarado elogio que hoje é feito das humanidades serve-se amiúde de oposições bastante patéticas face ao regime tecnológico, mas a verdade é que os clássicos tendem a ser dissolvidos em soluções ácidas até deles só restarem esses elementos ou citações mais célebres que podem ser instrumentalizados, como slogans, circulando hoje nas redes sociais como moeda de troca de uma sabedoria proverbial, cada vez mais distante do contexto e da tensão que lhes é própria, até ser possível utilizá-los para se dizer tudo e o seu contrário. Num exame implacável desse exercício de ir para as praias homéricas à cata da conquilha, o escritor Christian Salmon mostra-nos como, tantas dessas frases, desgarradas do seu contexto histórico e da obra de que foram extraídas, escapam inteiramente à intenção do autor, tornando-se signos permutáveis, máximas e até chavões, que engrossam o grande caudal de clichés em que se banha a nossa época. Publicado no mais recente número da revista Electra, Salmon recupera a célebre frase de Charles Péguy onde este nos fez notar que "Homero é novo esta manhã e talvez nada seja tão velho como o jornal de hoje". Para Salmon este regresso dos Antigos indicia uma tentativa de recuperar um quadro de referências num mundo onde esses pontos se estão a perder, e no qual todas as autoridades se acham desacreditadas, convocando-se Homero num esforço de satisfazer a nossa busca por um narrador fiável e incontestado. Nos nossos dias, e depois de Kasparov ter sido batido pelo Deep Blue, poderia recriar-se esse enfrentamento num território muito mais poroso e complexo, onde os padrões maquínicos até aqui estavam claramente em desvantagem. Mas, se fosse hoje encenada uma batalha opondo Homero ao Google, o problema não seria saber se o primeiro esmagaria o motor de pesquisa, mas antes, e não havendo métodos analíticos que pudessem decidir de forma objectiva quem ganhou ou perdeu, se não seria o público, ignorando as epopeias, a preferir a mistela que a Google confeccionasse seguindo ponto por ponto as suas preferências, e devolvendo-lhe assim uma espécie de auto-retrato adequadamente filtrado. A questão dos nossos dias não é saber se os clássicos mantêm o seu vigor face aos enredos costumizados para cada um de nós com base nas nossas preferências, mas simplesmente se nós não degradámos o nosso aparelho cognitivo ao ponto de os clássicos estarem a tornar-se demasiado incivilizados e desordeiros ou exigentes para o nosso gosto. O consumidor segue os seus caprichos até à alienação, e aquilo a que confere o valor "humano" assemelha-se cada vez mais a um reflexo distorcido pela máquina. As provas estão aí, e numa notícia que por estes dias circula nos nossos órgãos de informação, ficámos a saber que já foi realizado um estudo de uma universidade norte-americana que concluiu que os leitores estão convencidos de que, se lhes for dado a escolher, preferem a poesia escrita por humanos, mas que, se esta lhes for servida a par daquela gerada por Inteligência Artificial, a partir do momento em que a sua origem lhes seja ocultada, preferem o produto sintético, considerando-o “mais fácil de compreender”, e sendo levados a acreditar que isso significará que foi escrito por um humano e não por uma máquina. A inteligência que nasce do confronto com as dificuldades está a levar uma abada face a todos esses produtos que se reproduzem de acordo com padrões de consumo, e a deixar claro que a cultura de massas foi uma forma de nos deixar tenrinhos para o desbaste maquínico. Se nos esforçássemos por abandonar a perspectiva da eficácia, as projecções trimestrais, as expectativas de lucro e o regime utilitarista que guia as nossas escolhas, se seguíssemos uma matriz de análise histórica, como sugere Fredric Jameson, talvez nos déssemos conta de que a História que ainda somos capazes de imaginar a partir destas métricas é uma forma de agonia, e só conhece um movimento terminal. Se o futuro hoje é tão mais pobre do que foi no passado, é porque não o conseguimos representar de outra forma senão como uma repetição monótona do passado. A ideia consoladora de nos transferirmos para uma realidade onde sejamos imunes face aos perigos, transfere-nos depressa para quadros virtuais. Como assinalou António Guerreiro recentemente, essa tentação de estarmos ao abrigo das catástrofes responde a uma tendência paranóica e está constantemente a atravessar fronteiras que deviam ser intransponíveis. "É habitada pelo fantasma da protecção absoluta e da prevenção, tornando-se assim um obstáculo à liberdade, inclusivamente à liberdade de correr riscos." A humanidade poderia ser definida precisamente como essa espécie que corre riscos desnecessários, pois vive enfebrecida pela possibilidade de superar aquilo que já antes foi alcançado. Steiner aponta o milagre que se dá pelo simples facto das nossas gramáticas engendrarem continuamente proposições contrafactuais, 'e se...', e sobretudo tempos futuros, sendo isso o que deu à nossa espécie os seus meios de esperar e de ir muito para além da extinção da espécie. "Duramos, duramos criadoramente devido à nossa capacidade imperativa de dizer 'não' à realidade, de construir ficções de alteridade, de um 'outra coisa' sonhado, querido ou esperado que a nossa consciência possa habitar." Hoje, esta dimensão humana está em clara perda, e Baudrillard fala de um “hedonismo ligado”, em que o corpo não passa de um roteiro cuja curiosa melopeia higienista corre entre os inúmeros ginásios e os consultórios de cirurgia plástica e que descrevem uma obsessão colectiva assexuada. Assim, vai caracterizando uma sociedade fóbica, que responde a esse imperativo de tudo proteger, tudo captar, tudo circunscrever… “Tudo recensear, tudo armazenar, tudo memorizar.” Ele adianta como ali tudo merece protecção, embalsamamento, restauração. “Tudo é objecto de um segundo nascimento, o eterno do simulacro." O problema é então como localizar a diferença radical, essa que faz renascer o espírito insubmisso e que, diante das dificuldades o torna cada vez mais engenhoso, mais hábil e desafiador... "Como ligar de novo a ignição ao sentido da História para que ela comece uma vez mais a transmitir sinais, por mais débeis que sejam, do tempo, esse que segue adiante, essa margem de alteridade, de mudança, de Utopia", questiona Jameson. É uma questão de privação, de divórcio das máquinas, reconhecendo que aquilo que estas nos oferecem como futuro vai no sentido da nossa substituição. O passo seguinte no quadro evolutivo em que estamos presentemente lançados, passa por fazer do humano apenas o elemento de ligação para esse "sucedâneo maquinal". Neste episódio, e para discutir as implicações e as ameaças que hoje se colocam ao sector editorial, esse que nos últimos séculos tem estado no eixo dos esforços de transmissão de um legado cultural de séculos, contámos com a experiência desse subtil operador que tem sido Guilherme Pires, nas suas funções enquanto organizador de jogo, editor e conselheiro, tradutor, revisor, e tapa-buracos em toda a linha, alguém que conhece de cor a planta do edifício, e trabalhou em todos os pisos, desde aqueles submersos e que estão escondidos dos leitores e do público em geral, até aos andares modelo e às operações de charme e todos os esquemas que tanto embevecem os patêgos.
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